A "Chave de Ouro"


A tradição, insistimos, quer que o último verso do soneto seja uma "chave de ouro", encerrando a essência do pensamento geral da composição.

Não se pode afirmar quem a introduziu no soneto, sendo muito duvidosas as fontes, segundo as quais seu autor foi José Maria de Herédia (1842-1905). Muito antes dele, como se verifica, principalmente entre os grandes sonetistas que o antecederam, já havia esta tradição de que "o soneto deve abrir-se com chave de prata e fechar-se com chave de ouro". Herédia, quando muito, teria aperfeiçoado e incentivado a idéia.

Théophile Gautier, sofismando, afirmava que "se o veneno do escorpião está localizado na cauda, o mérito do soneto reside no último verso".
Não é isto. A "chave de ouro" deve ser um toque sutil no acabamento do soneto, e nunca um pretexto apenas, ou um contraste dos outros treze versos. Faz parte de sua unidade, de seu conjunto. Não é a sua razão de ser, como parece a muitos, como, aliás, parecia a Gautier.

O fecho do soneto destina-se a impressionar pela beleza da imagem. Essa imagem, todavia, não pode ficar isolada; ao contrário, pertence ao bloco de idéias que constitui a composição poética. Jamais deverá exercer a função de ferrolho do pensamento.

Vários dos parnasianos começavam seus sonetos pela "chave de ouro", e compunham depois o resto. Isso é muito perigoso, porque tal inversão de papéis há de, por certo, sacrificar, comprometer mesmo, o valor do poema. O artesanato, que, em geral, é necessário na confecção de um soneto, não aceita essa exorbitância. A sensibilidade, a inteligência e a razão, têm de formar uma união indissolúvel. Precisam permanecer interligadas e isto só será possível se for obedecida uma seqüência de pensamentos, contidos em um mínimo de palavras apropriadas.

O poeta, por mais talentoso que seja, dificilmente vai obter êxito na feitura de um soneto, se ele não percorrer, passo a passo, verso a verso, o caminho dos quartetos e dos tercetos, até alcançar, no momento crucial, o objetivo colimado, "como se o conceito — no dizer de Massaud Moisés — apenas brotasse do jogo dialético e nele próprio estivesse embutido ou subentendido".

Cada palavra com seu peso, cada imagem com seu valor. Faz-se mister uma verdadeira "chave de ouro", não apenas um verso bonito de efeito pirotécnico. Tem de ser um verso natural e adequado, a ponto de parecer indispensável.

Só o bom poeta consegue isto com eficiência. E de tal modo o consegue, que seus sonetos ostentam, às vezes, várias "chaves de ouro", e não apenas a do 14º  verso.

Muito importante é esta observação de Mello Nóbrega:
— "Critique-se e combata-se, isto sim, o soneto escrito em função de um verso preconcebido para encerrá-lo. Tão mau como o que se concentre na "chave de ouro" é, entretanto, o poema que termine aguadamente, afrouxando o tônus geral, ao invés de mantê-lo ou elevá-lo, na totalização realizadora. Essa questão da impressão final deixada pelo fecho dos poemas é, no entanto, muito sutil uma nota excessivamente dominante pode destoar do conjunto, desfazendo-lhe a unidade; é de considerar, de outra parte, que a atenuação talvez seja intencional, prolongando o encantamento poético, numa espécie de reticência de idéias, altamente sugestiva".

Em tal assunto, não se pode desprezar o conceito de Agostinho de Campos:
"Basta-me lembrar que a "chave de ouro" não é monopólio ou privilégio do Soneto; que todo o bom artista se preocupa com o bom remate da sua obra, seja ela qual for; e que as conclusões lapidares cuidadas, e até procuradas, são freqüentíssimas em toda a espécie de poemas ou poemetos".

Mas, vamos adiante...







(Das páginas 107 a 109 de "O Mundo Maravilhoso do Soneto, de Vasco de Castro Lima)




2 comentários:

  1. Maravilhosa pesquisa, grande sensibilidade para escolher entre tantos exemplos os mais encantadores versos eternos nessa forma eterna. Como a pintura impressionista, como a ópera, o soneto está muito longe de desaparecer. Quando se pensa em Antero de Quental "de-clamando": Na mão de Deus, na sua mão direita/ descansou, afinal meu coração... ou quando aparece Vinícius e recita: De repente do riso fez-se o pranto/ silencioso e branco como a bruma... ou quando Martins Fontes diz: (...) quer dizer Mãe este M tão perfeito/ que com certeza em minha mão foi feito/para quando eu for bom pensar em ti, e outros tantos exemplos de beleza peregrina que a amável forma nos traz, temos a certeaza de que a amável forma jamais se extinguirá. Enquanto houver Poesia o Soneto viverá. E esta pesquisa tão especialmente feita nos comove sobremodo e aqui nos calamos, ouvindo o Concerto de Chopin, poeta da música, quase que se pode dizer: sonetista emérito!
    Parabéns, caro amigo pela sensibilidade e cultura demonstrada! Obrigada!
    Abraço emocionado desta irmã na sensibilidade
    Rejane

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