Carmo Vasconcelos

Lisboa, Portugal, 1938


VENDAVAL
Carmo Vasconcelos

Entre nós existia um espesso véu,
crivado de poentes e de estrelas,
adormecidos sóis, exangues velas,
bailando em nossos sonhos de Morpheu.

Mas eis que um vendaval rompeu no céu,
arrombou-nos as portas e janelas,
nos tectos, sangue quente pintou telas,
e roto o véu, tombei no peito teu.

E agora, entontecida, meio atordoada,
não sei dizer, amor, s’estou acordada
ou se me imolo em chamas de paixão…

Só sei que morro em vida, coração,
vagando à toa, qual nave desnorteada,
até me resgatares por tua mão!



DE MENINA A MULHER
Carmo Vasconcelos

De menina-botão a mulher-flor,
desabrochaste por decretos santos,
de irisado matiz hauriste a cor,
e ornada de asas, redobraste encantos.

Avezinha sagaz, voando em espantos,
o mundo descobriste ao teu redor,
pisaste o vale, alçaste a picos tantos,
e elegeste o meio-céu, teu corredor.

Não quiseste ser águia lá na altura,
nem pássaro na pedra enlodaçada,
assisada, pairaste na planura.

De lá emanas trinados de doçura,
mater do amor, vestal no céu talhada,
Ave-Mulher, plasmada de ternura!



MEU REI
Carmo Vasconcelos

Num dia em que o cinzento se fez cor,
amargurada e só, pedi aos céus
que relevasse, enfim, pecados meus
e me trouxesse um deus de carne e amor.

E a Providência, sábia em seu rigor,
logo, por entre crentes e ateus,
se pôs a procurar por esse deus
rogado em minha prece com ardor.

Então, me trouxe um rei, nu, despojado,
que fez de mim rainha da ventura,
p’ra além do que sonhou minha  procura.

E agora, em minhas preces agradeço,
e em jubilosas lágrimas eu peço
que eu seja do meu rei final reinado!



NÃO CHORES, POESIA!
Carmo Vasconcelos

Não chores, poesia, minhas ausências,
se na tristeza em lágrimas te deixo…
Porque breve é meu aparto e meu desleixo
na urgência de abraçar outras carências.

São desta vida esparsa as contingências,
que me afastam de ti, divinal eixo,
levando-me a rolar, inquieto seixo,
por areias rendilhadas de envolvências.

Mas sempre volto, amada flor, e ajoelho
com alma de menina arrependida,
a pôr-te aos pés meus versos de amor velho.

E tu serás, das flores mais dilectas,
a eleita que levada na partida,
hei-de plantar no azul astral dos poetas!



QUE IMPORTA?...
Carmo Vasconcelos

Que importa os tempos negros já passados,
os foscos dias, sem sol ou réstia dele…
Se com lágrimas foram já lavados
e em versos sepultados no papel?

Que importa os ais, sustidos, engasgados,
os arrepios revoltos pela pele,
se todos se aplacaram desbastados
p’la douta lei da vida e seu cinzel?

Perfeita a mão da sábia natureza
que nos modela ao traço estrutural
que exige pormos n’ alma mais nobreza;

passo a passo na viagem oscilante,
polirmos nosso cerne existencial,
e a pedra lapidarmos em diamante!



AMARGO-DOCE
Carmo Vasconcelos

Fazes-me tanta falta, meu amor!…
Como o vento que enfuna a lassa vela,
o leme que impulsiona a caravela,
o estio que o fruto emprenha de calor!

Sem ti a noite despede o seu fulgor,
e eu fico cega ao breu desta janela,
se não me chega o teu brilhar de estrela,
fúlgida luz que ofusca a minha dor…

A dor de não poder aconchegar-me
no teu peito… teus dedos a afagar-me,
e o fogo do teu corpo ao meu colado.

E é como amargo-doce este licor,
de amar-te a conta-gotas mal contado,
em doses homeopáticas de amor!



A LÁGRIMA
Carmo Vasconcelos

Não sei por que uma lágrima rolou,
teimosa e repentina plo meu rosto,
se na minha alma mora um sol de agosto
e no meu peito um amor que despontou…

Por que tal emoção me transtornou
tal uma iluminura de sol-posto?
Se em vez de partitura de desgosto,
foi um concerto de anjos que chegou…

E nesse acorde de harpas promissor,
foi como o mundo então rodasse em cor,
alagando os meus olhos por te ter…

E a lágrima incontida transbordou,
e de ânsias liquefeita deslizou,
buscando os beijos teus para a sorver!



IMITAÇÃO DO AMOR
Carmo Vasconcelos

“Crescei e multiplicai-vos”
(Bíblia – Gen. 1.28)

Por que endeusar suposto amor feito inconcreto,
quando distante, sem carícia, beijo ou mão,
não satisfaz o nosso amante coração,
se na lonjura morre o amor por incompleto?

Manter, assim, a imitação de um vero afecto,
ausente o pele-a-pele, erótica emoção,
é demitir-se da sensual lei da atracção
que nos conduz ao verdadeiro par dilecto.

É caminhar em vão na fosca irrealidade,
que a carne não se compadece em divindade
nem santifica a condição de seus apelos…

Requer a nossa humanidade, firmar elos
gratificantes de alma e corpo, em dualidade,
que a Lei de Deus desdiz o amor em castidade!



MUSA AMADA
Carmo Vasconcelos

Por que me tentas ora que estou cheia
do verde dia que a minha mente enrama
– tecedura da vida que me chama
aos elos da terrena e crucial teia?

Acerta o teu relógio, musa amada,
que de versos agora estou vazia,
não te marquei encontro, poesia,
espera-me logo à noite enluarada!

Preciso se me faz beijo de estrelas;
abraço do universo que me inspira;
astros a copular co’a minha lira!

Se extasiada me vires p’las janelas,
vem então, musa amada, meiga e nua,
e ao teu toque d’amor me farei tua!



DESESPERO
Carmo Vasconcelos

Se soubesses, amor, do desespero
quando te vais, perdido na distância…
De saudade e desejo me exaspero,
me contorço e sucumbo, morro de ânsia.

Só revivo, depois, porque te espero,
e trémula ao vibrar dessa inconstância,
sonho beber-te ao muito que te quero
como licor de erótica fragrância.

E quando nos teus braços me dominas,
me entrego como ré de vis pecados,
gozando a penitência que me ensinas:

De joelhos, mãos e língua dançarinas,
escrever plo teu corpo mil recados;
juras de amor eterno em nossas sinas!



CONSPIRAÇÃO…
Carmo Vasconcelos

Nos meandros do caminho a encruzilhada…
O escuro, a indecisão, qual a passagem?
Desses tantos caminhos qual a estrada,
que há-de levar ao prémio pla coragem?

Eis que dois cegos cruzam as pegadas,
mendigos sós, exaustos pela viagem,
a quem os golpes mil nas caminhadas
cegaram para a fé numa viragem.

Porém, o sábio Cosmos conspirou,
num elo indestrutível os juntou,
fazendo dela amante ao seu senhor!

Se iluminou de vez a encruzilhada!
Não mais serão dois cegos na jornada
nem dois mendigos esmolando amor!



RECONSTRUINDO PONTES
Carmo Vasconcelos

Derrubem-se as paredes orgulhosas,
erigidas na raiva dos repentes,
triturem-se os tijolos insolentes
e as pedras de arremesso, belicosas!

E desfeitos os muros corrompidos,
reconstruam-se pontes migratórias
que resgatem afectos e memórias,
em águas rancorosas imergidos!

Retome-se a palavra naufragada,
recolham-se os abraços afundados,
desafoguem-se os réus por nós julgados,
e a travessia da paz faz-se alcançada!

Que a morte espreita e surge inesperada,
e o que sabemos dela é quase nada!



MEU CÂNTICO DE AMOR
Carmo Vasconcelos

Fosse eu um rouxinol te cantaria,
embevecida, em meus trinados belos,
a mais alegre e excelsa melodia
que houvera, a festejar os nossos elos.

Porém, me falta a voz, pla idolatria
à resposta encontrada aos meus apelos,
que mágica ou divina se diria,
plos dons que nem ousava concebê-los.

E é tanta a festa a estrelejar no peito
que abafa qualquer hino de emoção,
sufocados a voz e o coração.

E o meu canto de amor assim calado,
explode no teu corpo ao ser beijado
plas notas que componho em nosso leito!



EXIGUIDADE
Carmo Vasconcelos

Avaras as palavras se oferecem
quando toca, profundo, o sentimento,
é como traduzir sem luzimento
os êxtases sublimes que encandecem.

De pronto oferecidas, desmerecem
a grandeza de um mágico momento
de luz, felicidade e encantamento,
e só mui raramente o enobrecem.

Exíguas, as palavras transfiguram
apenas como sombras ofuscantes
as feéricas volúpias dos amantes…

E assim, nos martirizam, nos torturam,
plo verbo que parece nada ser
e é tudo nas delícias de o viver!



A VOZ DA PRIMAVERA
Carmo Vasconcelos

Já vão partindo as noites invernosas,
os dias tristes de humores enevoados,
degelam as correntes caudalosas,
furam a terra os brotos encubados.

Regressam andorinhas migratórias,
os céus revestem mantos de esplendor,
ao Pai Celeste sobem oratórias,
das aves em seus cantos de louvor!

É a nova Primavera a despontar,
que, sem palavras, vem pra nos dizer,
da natureza, o eterno renovar,
que da aparente morte há renascer!

Ouça-se dela a fala da razão!
- Que a morte é só… da vida uma estação!



A BAILARINA
Carmo Vasconcelos

Ela é do sonho a maga fada, a Melusina,
a que requebra, se contorce, a que se esgarça,
p’ra ser no palco a fulgurante serpentina
que sobe aos cumes e de arco-íris se disfarça.

Nela há silêncios, paz serena, olhar de garça,
surdos rumores de algodão e musselina,
quiçá de um vate a suavidade de uma esparsa,
ou de Pierrot segredo e beijo a Columbina.

Oculta mora em toda a diva bailarina
uma alma eleita pelos céus encomendada
de neste chão terreno alçar aura divina.

Trouxe do Além as asas de anjo e de vestal,
na fronte a luz da divindade reencarnada,
e nos alados pés, a sina de imortal!



O RENASCER DE UM SONHO
Carmo Vasconcelos

O meu sonho era imenso, desmedido,
uma ave de papel, uma aguarela,
um papagaio que ao sol, desvanecido,
ia morrendo nas cores da sua tela.

Porém, a verde guita, ora amarela,
sumida a pouco e pouco, o fio torcido,
inda o prendia em fiapos pela ourela,
como um fruto pendente, amolecido.

Mas em prece silente ao coração,
a sombra do sonhado resistia,
tal qual um moribundo em oração.

Foi quando um santo mestre que o ouvia
repôs-lhe os tons do amor co'a própria mão
e o sonho renasceu dessa utopia!



NOVA ERA
Carmo Vasconcelos

Houve um insano tempo de loucura,
de experiência, fuga e devaneio,
paixões fugazes, fúteis e sem freio,
inúteis e mescladas de amargura.

Nada alcançava a íntima procura,
nada bastava ao meu profundo anseio,
que disfarçava em versos de entremeio
espalhados p’los cantos da lonjura.

Foi longo o tempo d’alma agreste e frio
quando o meu coração triste e vazio
suspirava por vero e terno amor…

Contigo, enfim, cessou a minha espera,
trouxeste luz, estrelas, primavera,
e eu me deleito agora ao teu calor!



BRILHO E FETICHES
Carmo Vasconcelos

Não quis tentar-te com meus trajes sedutores,
pintar a tez com a pomada dos enganos,
nem dar aos olhos coloridos turbadores,
sujar meus lábios de carmins, quiçá, profanos.

Nem do perfume preferido me espargi
p’ra não dopar-te num aroma afrodisíaco,
símil a mim mesma, segura, me vesti,
só meu profundo amor luzia, paradisíaco. 

Nua de disfarces, a minh’alma te mostrei,
para que amasses, não o frasco mas a essência,
o néctar, nu da falsidade da apetência.

Brilho e fetiches de coquete resguardei,
p’ra nossos íntimos momentos mais ousados,
que ambos queremos numa alcova de pecados!



AMOR
Carmo Vasconcelos

(1º Prémio do Concurso Internacional de Poesia do MUC, 
Maio 2014 - tema "Amor")

Amor é um poliedro imensurável,
em cujas mil facetas moram mundos
de sentimentos vários e profundos,
misto de sensações, cerne impalpável.

Tão breve é salvação como perigo,
ora certeza pura, inquestionável,
ora dúvida amarga, insustentável,
tranquilidade, quando amor amigo.

Amor-paixão retrata turbulência,
se maternal, doçura e paciência,
se apego ao transitório, veleidade…

Amar a todo próximo é premência,
seguindo a Supra e Divinal querência
que prega Amor Total  p’la Humanidade!



SINTONIA
Carmo Vasconcelos

Hoje, de mão na mão, nos completamos
assim como se casam noite e dia;
se enlaçam terra e céu em sintonia;
namora a luz com o ar que respiramos.

Tal como o mar e a espuma nos ligamos,
vogando na maré calma ou bravia,
amando quer no estio ou na invernia
do tempo que ora juntos navegamos.

Somos na Natureza caminhantes,
seguindo a par seus doutos elementos
que, sábios, sempre alternam inconstantes.

E também nós, amor, nossos instantes
temperamos com doce na acidez
e mudamos o gelo em calidez!



PROMESSA
Carmo Vasconcelos

Como filha dilecta desejada,
aninhou-se em meu ventre a poesia,
semente imersa em leito de magia
fez-se desperta em mim numa alvorada.

Auréola fascinante, ensolarada,
me envolve agora a mente a cada dia,
sangue que pulsa a par da idolatria
pela bênção divina em mim gerada.

Mas se me enleia o dia, pródigo de encanto,
a noite me seduz e me extasia
ao pousar nos meus dedos, p'ra meu espanto,

o verso eleito e puro, de halo santo,
dom sublime que orando aos céus prometo
vestir de luz com brilhos de soneto!



MEU NOVO AMOR
Carmo Vasconcelos

Chegas-me de surpresa neste Inverno!
Como me adivinhaste assim tão só,
mordendo da saudade o amargo pó,
roçando o cio nas grades deste inferno?

Quem te mandou?… Demónio ou zelo de anjos?...
Trazes néctar dos deuses nos teus beijos,
no mel da voz, hipnóticos arpejos,
mescla de harpas e cítaras com  banjos!

Mas… não sei se te quero ou mando embora,
se me entrelaço ao róseo desta aurora
ou se me acolho às sombras do poente…

Somar bisado arco-íris na memória,
dos tais que chuva intrusa rouba a glória?…
– Não sei, meu novo amor, sinceramente!



MEU LUGAR
Carmo Vasconcelos

O meu lugar cativo está no Além,
que este daqui, por marco provisório,
tem seu tempo marcado, transitório,
é morada perpétua de ninguém.

Estamos de passagem, mas porém,
não é caminho vão, de todo inglório,
pois se revela p'ra alma sanatório
de erros passados - carma que detém.

Na breve estada cabe-nos saldar
o "deve" e "haver" de vidas mal vividas
na displicência própria dos infantes;

sair da senda dos ignorantes,
crescer na luz das chances concedidas,
p'ra ganharmos, enfim, "nosso lugar".



 ESTRELA-GUIA
(Aos meus filhos)
Carmo Vasconcelos

Quando um dia, filhos meus, eu vos deixar,
Não chorem por meu corpo já cansado,
Que já não pode ter-vos ao cuidado,
Se é tempo de partir e descansar.

Revejam-me no céu, já estrela-guia,
Que do alto vos protege e por vós zela,
Seguindo vossos passos, sentinela,
A adoçar-vos a mágoa que angustia.

Espalhem minhas cinzas pelo mar,
Que sempre vossos pés virei beijar,
Em ondas segredantes de carinho.

E em seus murmúrios, hão-de ouvir, baixinho,
Vindo da profundeza dos corais,
Que zelo e amor de mãe são imortais!



2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Blogger Sonia Palma disse...
    Carmo Vasconcelos, passei por aqui para ler seus sonetos e eles só me confirmaram mais uma vez a grande poetisa que você é.
    Todos maravilhosos!
    Me encantei com os que você descreve seu vínculo de amor pela poesia.
    Certamente visitarei as páginas de outros autores.
    Grande beijo desde a Inglaterra!

    20 de março de 2017 07:28

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